O críquete feminino tem raízes profundas e uma trajetória rica, que começa oficialmente com um relato em 1745 e se desdobra por quase três séculos de coragem, organização e profissionalização. Da partida entre aldeias perto de Guildford às finais em estádios lotados e ligas profissionais, a história do críquete feminino é a história de atletas que desafiaram normas e construíram um esporte global.
Em poucas palavras: a história do críquete feminino começa com o primeiro jogo registrado em 1745, se organiza em associações a partir do início do século XX, inaugura sua Copa do Mundo em 1973 e acelera na era T20 com audiência recorde, contratos profissionais e expansão internacional.
1745: o ponto de partida em Guildford
A origem documentada do críquete feminino remonta a 26 de julho de 1745. O jornal The Reading Mercury registrou uma partida em Gosden Common, próximo a Guildford, no condado de Surrey, entre as aldeias de Bramley e Hambledon. O relato descreve “onze donzelas de Bramley e onze de Hambledon, todas vestidas de branco”, com fitas azuis e vermelhas na cabeça para distinguir os times. O placar foi apertado: Bramley marcou 119 “notches” (um termo antigo para corridas), enquanto Hambledon somou 127.
Mais do que a pontuação, chamou atenção a habilidade das jogadoras — o jornal destacou que elas “arremessaram, rebateram, correram e pegaram como a maioria dos homens o faria”. Também houve grande público, um indício de que, desde cedo, o críquete feminino despertava curiosidade e entusiasmo popular.
Da tradição rural ao interesse nacional (séculos XVIII e XIX)
Após 1745, partidas ocasionais entre mulheres foram registradas em diferentes regiões da Inglaterra, muitas vezes em contextos rurais e festividades locais. Confrontos “solteiras x casadas” e jogos beneficentes eram comuns, refletindo os costumes da época. A presença de apostas e grandes plateias não era incomum, o que ajudou a manter a modalidade visível.
No século XIX, o críquete em geral se consolidou como passatempo nacional britânico. Para as mulheres, porém, normas sociais e limites de acesso a clubes e instalações retardaram avanços estruturados. Ainda assim, escolas femininas e iniciativas filantrópicas passaram a encorajar a prática esportiva, criando uma base de jogadoras e simpatizantes que seria crucial mais adiante.
Organização e primeiros marcos internacionais (1920–1930)
O passo decisivo rumo à estruturação veio em 1926, com a criação da Women’s Cricket Association (WCA), na Inglaterra. A WCA coordenou competições, treinamentos e excursões, oferecendo um arcabouço mínimo para o desenvolvimento do críquete feminino.
Em 1934–35, ocorreu a primeira série de Testes femininos, com a seleção inglesa excursionando pela Austrália e pela Nova Zelândia. O primeiro Test feminino foi disputado em Brisbane, em 1934, e a Inglaterra venceu — marco inaugural do que se tornaria a rivalidade mais tradicional do críquete feminino, hoje conhecida como Women’s Ashes (As Cinzas Femininas), entre Inglaterra e Austrália. Em 1935, a Inglaterra também jogou o primeiro Test na Nova Zelândia, ampliando a relevância internacional da modalidade.
Do pós-guerra à governança global (1945–1970)
No pós-guerra, o críquete feminino se reativou com mais frequência de jogos internacionais e engajamento de novos países. Em 1958, nasceu o International Women’s Cricket Council (IWCC), primeira entidade internacional dedicada ao críquete feminino, que estabeleceu regras, organizou tours e promoveu a modalidade em várias frentes.
Esse período foi de consolidação e preparação para um salto histórico: a criação da Copa do Mundo.
1973: a 1ª Copa do Mundo de Críquete — antes da masculina
Em 1973, a Inglaterra sediou a primeira edição da Women’s Cricket World Cup, dois anos antes da primeira Copa do Mundo masculina. Com apoio de patrocinadores e o carisma de líderes como Rachael Heyhoe Flint, a competição reuniu seleções e composições representativas e consagrou a Inglaterra campeã. O torneio provou que havia público, nível técnico e narrativa própria no críquete feminino, estabelecendo um pilar que permanece até hoje.
Anos 1990 e 2000: expansão, T20 e fusão com a ICC
Nos anos 1990, o críquete feminino ganhou visibilidade com Copas do Mundo mais amplas e transmissões televisivas. Em 1997, a edição sediada na Índia levou dezenas de milhares de torcedores ao Eden Gardens, em Calcutá, sinalizando um potencial de audiência até então subestimado.
Em 2004, foi disputado o primeiro T20 International feminino, antecipando uma revolução no formato curto do jogo. Em 2005, o IWCC se fundiu ao International Cricket Council (ICC), integrando o críquete feminino à governança global do esporte. Em 2009, a primeira Women’s T20 World Cup ocorreu na Inglaterra, solidificando a modalidade como produto contemporâneo, dinâmico e televisivo.
A era das ligas e dos recordes de público (2010–presente)
A profissionalização de estruturas e o lançamento de ligas nacionais foram decisivos:
- Austrália: a WBBL (Women’s Big Bash League), iniciada em 2015, tornou-se referência de calendário, marketing e formação de talentos.
- Inglaterra e País de Gales: entre 2016 e 2019, a Kia Super League ajudou a elevar o padrão; desde 2020, o sistema regional (Rachael Heyhoe Flint Trophy e Charlotte Edwards Cup) e, desde 2021, o The Hundred feminino ampliaram alcance e visibilidade.
- Índia: a Women’s Premier League (WPL), lançada em 2023, movimentou cifras inéditas em direitos e salários, atraindo estrelas internacionais e um público massivo.
O momento-símbolo dessa nova fase veio em 8 de março de 2020, quando a final da Women’s T20 World Cup, no MCG (Melbourne Cricket Ground), reuniu 86.174 torcedores — uma das maiores audiências presenciais da história do esporte feminino.
Pioneiras e ícones do críquete feminino
- Rachael Heyhoe Flint (Inglaterra): capitã, articuladora da 1ª Copa do Mundo (1973) e voz influente por décadas.
- Belinda Clark (Austrália): em 1997, marcou 229* em um ODI — o primeiro duplo século da história dos ODIs, independentemente de gênero.
- Mithali Raj (Índia): líder histórica em corridas na ODI feminina, símbolo de consistência e longevidade.
- Jhulan Goswami (Índia): por anos a maior wicket-taker em ODIs femininos, referência de ritmo e durabilidade.
- Ellyse Perry (Austrália): multiatleta e estrela multi-formato, ajudou a redefinir padrões de excelência.
- Charlotte Edwards e Sarah Taylor (Inglaterra), Meg Lanning e Alyssa Healy (Austrália), Suzie Bates (Nova Zelândia) e Smriti Mandhana (Índia): nomes que marcaram eras recentes, títulos e recordes.
Formatos, regras e particularidades
- Testes: partidas longas (tradicionalmente de 4 dias no feminino), raras no calendário atual, mas de grande prestígio.
- ODI (One-Day Internationals): 50 overs por lado, base da Copa do Mundo.
- T20 Internationals: 20 overs por lado, formato mais dinâmico e televisivo, impulsionador de ligas e novos públicos.
O críquete feminino segue as Leis do Críquete, com ajustes de logística e calendário. O aumento de transmissões e dados analíticos elevou o entendimento tático e a apreciação das habilidades específicas do jogo feminino.
Profissionalização e avanços pela igualdade
Nos últimos anos, federações nacionais e a ICC aceleraram a profissionalização:
- Contratos centrais: Inglaterra adotou contratos profissionais para jogadoras de elite a partir de meados da década de 2010; na Austrália, as estruturas de contratos e a WBBL criaram um dos ecossistemas mais sólidos do mundo; a Índia ampliou investimentos e, em 2022, anunciou igualdade de taxas de match fee para homens e mulheres em jogos internacionais.
- Premiações: em 2023, a ICC anunciou paridade de prêmios entre torneios globais masculinos e femininos, um passo simbólico e prático rumo à equidade.
- Estruturas domésticas: a profissionalização de ligas e competições regionais (por exemplo, na Inglaterra, Austrália e África do Sul) abriu carreiras sustentáveis a um número crescente de atletas.
Expansão global e novas fronteiras
O críquete feminino deixou de ser um núcleo anglo-saxão para se tornar genuinamente global. Em 2018, a ICC concedeu status de T20I a todas as seleções membros, estimulando torneios regionais e ranking mundial. Seleções emergentes como Tailândia conquistaram resultados expressivos em qualificatórios e fases finais de torneios T20, ganhando torcida e reconhecimento.
Em 2023, a ICC realizou o primeiro Mundial Sub-19 Feminino de T20, na África do Sul, com vitória da Índia — uma vitrine para novas gerações. O caminho rumo a Los Angeles 2028, quando o críquete (formato T20) retornará ao programa olímpico, promete ampliar investimentos, visibilidade e inclusão de novas federações.
Comparando eras: do amadorismo à era das superligas
Se no século XVIII as jogadoras se organizavam em partidas locais e trajes simples, hoje o cenário envolve análise de desempenho, ciência do esporte e contratos multimilionários em ligas como WBBL, The Hundred e WPL. A velocidade média das arremessadoras, a potência das rebatedoras e a agilidade no campo aumentaram com a profissionalização, enquanto a padronização de campos e transmissões elevou a experiência do público.
Por outro lado, persistem desafios: equilíbrio competitivo entre mais e menos financiadas, acesso a instalações de qualidade em países emergentes e a necessidade de calendários internacionais estáveis para Testes e ODIs, não apenas T20s.
Momentos e números que moldaram o imaginário
- 1745: Bramley x Hambledon, o primeiro registro oficial de um jogo feminino.
- 1934: primeiro Test feminino; gênese das Women’s Ashes.
- 1973: estreia da Copa do Mundo Feminina de Críquete, vencida pela Inglaterra.
- 1997: grande público no Eden Gardens reforça o potencial do torneio.
- 2004: primeiros T20Is femininos, inaugurando a era do formato curto.
- 2005: fusão do IWCC com a ICC; governança unificada.
- 2020: 86.174 pessoas na final da T20 World Cup no MCG, um marco global.
Como acompanhar e se envolver hoje
- Competições internacionais: Women’s Cricket World Cup (ODI), Women’s T20 World Cup e Women’s Ashes.
- Ligas: WBBL (Austrália), The Hundred e o sistema regional na Inglaterra, WPL (Índia), além de torneios domésticos na Nova Zelândia, África do Sul, Caribe e outros.
- Seleções em ascensão: acompanhe classificados de torneios regionais e equipes emergentes que se destacam no T20I.
Seja no streaming, TV aberta ou redes sociais, a oferta de transmissões e highlights cresceu exponencialmente, facilitando a descoberta de novas jogadoras e histórias.
Conclusão
Daquele dia em Gosden Common, perto de Guildford, ao brilho das finais globais, a história do críquete feminino é um arco de inclusão, talento e inovação. Ela celebra pioneiras que romperam barreiras e uma geração atual que transforma recordes em rotina. Com a chegada de novas ligas, a paridade de prêmios em torneios da ICC e a perspectiva olímpica, o futuro aponta para mais competitividade, visibilidade e inspiração — consolidando o críquete feminino como uma das histórias esportivas mais vibrantes do nosso tempo.
FAQ
Quando aconteceu o primeiro jogo de críquete feminino registrado?
Em 26 de julho de 1745, perto de Guildford, na Inglaterra, entre as aldeias de Bramley e Hambledon, conforme noticiado pelo The Reading Mercury.
Quem organizou o críquete feminino no início do século XX?
Em 1926, foi criada a Women’s Cricket Association (WCA), na Inglaterra, que estruturou competições e excursões. Em 1958, surgiu o International Women’s Cricket Council (IWCC), que se fundiu à ICC em 2005.
Qual foi o primeiro grande torneio global?
A primeira Copa do Mundo Feminina de Críquete foi em 1973, na Inglaterra — dois anos antes da masculina. A Inglaterra foi campeã.
Quando o T20 começou no críquete feminino?
Os primeiros T20 Internationals femininos ocorreram em 2004, abrindo caminho para a Women’s T20 World Cup (desde 2009) e para o boom das ligas profissionais.
Quais países dominam historicamente?
Austrália e Inglaterra são potências tradicionais. A Nova Zelândia tem forte histórico, enquanto Índia, África do Sul e outras seleções vêm crescendo rapidamente, especialmente no T20.
Quem são algumas das maiores jogadoras?
Rachael Heyhoe Flint, Belinda Clark, Mithali Raj, Jhulan Goswami, Ellyse Perry, Charlotte Edwards, Meg Lanning, Alyssa Healy e Suzie Bates, entre outras.
O críquete feminino estará nas Olimpíadas?
Sim. O críquete no formato T20 foi aprovado para os Jogos de Los Angeles 2028, com expectativa de torneios masculino e feminino.