
William Tyndale (c. 1494 – 1536) foi um erudito bíblico e linguista inglês, figura central da Reforma Protestante, cuja tradução da Bíblia para o inglês moldou a língua e a fé de gerações. Entre seus escritos, destaca-se A Obediência do Homem Cristão (1528), um manifesto contundente em favor da autoridade das Escrituras e do papel dos governantes civis sobre os assuntos eclesiásticos.
Publicada originalmente em Antuérpia por Merten de Keyser, a obra advogou que o rei de um país é, sob Deus, a autoridade suprema também nas questões da Igreja — uma tese que influenciou, direta ou indiretamente, a política religiosa de Henrique VIII e o Ato de Supremacia de 1534.
Quem foi William Tyndale?
Filho da Inglaterra tardomedieval, Tyndale formou-se em Oxford e teve contato com os debates humanistas em Cambridge, absorvendo a ênfase do ad fontes — voltar às fontes originais da fé cristã: o hebraico e o grego das Escrituras. Influenciado por Erasmo de Roterdã e Martin Luther, Tyndale criou o projeto que marcaria sua vida: tornar a Bíblia inteligível ao povo em linguagem viva e clara.
Seu Novo Testamento em inglês (1526) e traduções do Pentateuco (1530) pavimentaram o caminho para as versões oficiais inglesas subsequentes, incluindo a Great Bible, a Bishops' Bible e, sobretudo, a King James Version (1611). Uma estimativa frequentemente citada sugere que aproximadamente 83% do Novo Testamento e 76% do Antigo Testamento da KJV ecoam a redação de Tyndale.
O livro “A Obediência do Homem Cristão” (1528)
Publicação, título e contexto
O título original completo, em grafia da época, era: The Obedience of a Christen man, and how Christen rulers ought to govern, wherein also (if thou mark diligently) thou shalt find eyes to perceive the crafty convience of all iugglers. Hoje, costuma-se modernizar e abreviar para The Obedience of a Christian Man (em português, A Obediência do Homem Cristão). O livro foi impresso em Antuérpia, então um centro vibrante de comércio e de ideias, por Merten de Keyser em 1528.
O subtítulo promete dar ao leitor “olhos para perceber” as artimanhas dos “jogglers” — termo pejorativo para embusteiros e manipuladores —, uma alusão às táticas de autoridades eclesiásticas e intérpretes que, segundo Tyndale, desviavam o povo da autoridade clara das Escrituras.
Ideias centrais do tratado
- Primazia das Escrituras: a Bíblia, em língua acessível, deve governar a vida do cristão e da Igreja, sobrepondo-se a tradições humanas.
- Autoridade dos governantes civis: reis e magistrados são ministros de Deus para o bem comum e, nessa condição, não devem ser subjugados pelo papa em assuntos temporais dentro de seu próprio reino.
- Obediência cristã: os fiéis devem obedecer às autoridades civis, exceto quando estas ordenarem algo que contradiga diretamente a Palavra de Deus.
- Reforma do clero: crítica à corrupção, às taxas eclesiásticas e ao bloqueio do acesso do povo às Escrituras.
- Direito divino dos reis (em inglês): a obra é frequentemente apontada como uma das primeiras, em língua inglesa, a articular que a autoridade do rei é estabelecida por Deus sob a lei divina — uma formulação que, na tradição protestante, difere do pensamento político medieval e é muitas vezes atribuída equivocadamente ao catolicismo na forma absolutista posterior.
Impacto e recepção
Um exemplar do livro chegou às mãos de Henrique VIII — possivelmente via Ana Bolena — e foi lido com interesse. Muitos historiadores consideram que o argumento de Tyndale forneceu um arcabouço intelectual para o Ato de Supremacia (1534), pelo qual Henrique VIII foi proclamado “Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra”. Ainda que o rei e Tyndale logo entrassem em rota de colisão, o tratado antecipou o realinhamento entre trono e altar na Inglaterra.
Da influência ao confronto com Henrique VIII
Apesar de ver em Tyndale uma justificativa para a supremacia real sobre a Igreja, Henrique VIII buscava também a legitimação bíblica para anular seu matrimônio com Catarina de Aragão. Em The Practice of Prelates (1530), Tyndale argumentou que a anulação contrariava as Escrituras, o que suscitou a ira real. Essa oposição custou-lhe a proteção política na Inglaterra e reforçou seu exílio voluntário no continente.
Tyndale, o tradutor da Bíblia em inglês
Método e princípios
- Texto-fonte: Tyndale traduziu diretamente do grego (Novo Testamento) e do hebraico (partes do Antigo Testamento), valendo-se de edições críticas como o Novo Testamento grego de Erasmo.
- Clareza e energia verbal: seu inglês é simples, vigoroso e memorável, moldando o idioma literário e popular.
- Critério teológico: a justificação pela fé e a centralidade de Cristo orientam sua hermenêutica, sob a máxima de que a Escritura interpreta a Escritura.
Publicações principais de tradução
- Novo Testamento (1526): impresso em Worms após uma tentativa frustrada em Colônia; rapidamente contrabandeado para a Inglaterra.
- Pentateuco (1530): Gênesis a Deuteronômio, com prefácios e notas.
- Jonas (1531) e outras porções do Antigo Testamento.
Depois de sua morte, a influência textual de Tyndale foi onipresente. A Matthew Bible (1537), autorizada um ano após sua execução, incorporou grande parte de seu trabalho, com contribuições de John Rogers e Myles Coverdale para completar seções ainda não vertidas. Mais tarde, a Great Bible (1539) e a Bishops' Bible (1568) também beberiam de sua prosa. Finalmente, a King James Version (1611) consolidou sua cadência e vocabulário como padrão do inglês bíblico.
Prisão, julgamento e martírio
Refugiado nos Países Baixos, então sob a autoridade de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano, Tyndale continuou a escrever e a revisar seu trabalho. Em 1535, foi preso por autoridades católicas em Antuérpia e encarcerado no castelo de Vilvoorde, perto de Bruxelas, por mais de um ano. O ministro-chefe de Henrique VIII, Thomas Cromwell, tentou interceder, sem sucesso.
Em 1536, Tyndale foi condenado por heresia e executado por estrangulamento; em seguida, seu corpo foi queimado na estaca. Suas últimas palavras teriam sido uma oração: “Senhor, abre os olhos do rei da Inglaterra”. Ironia da história, em 1537 foi autorizada a Matthew Bible, baseada em larga medida em suas traduções, sinalizando que a “oração” ecoara no ambiente político-religioso inglês.
Mitos, debates e nuances
- Direito divino e absolutismo: o argumento de Tyndale de que o rei responde diretamente a Deus em sua esfera não equivale a um cheque em branco ao despotismo. Para Tyndale, a obediência civil é condicionada pela fidelidade à Palavra; quando a autoridade exige algo que contraria as Escrituras, “é melhor obedecer a Deus do que aos homens”.
- Catolicismo medieval e política: a associação popular entre “direito divino dos reis” e catolicismo é anacrônica na forma absolutista moderna; a formulação inglesa ligada à Reforma tem matriz distinta.
- Tyndale e Henrique VIII: a mesma pena que serviu para legitimar a supremacia real sobre a Igreja também sustentou a crítica ao divórcio do rei. Tyndale não foi um panfletário de conveniência, mas um exegeta coerente.
Por que William Tyndale continua relevante
- Linguagem: sua prosa influenciou profundamente o inglês, com cadências e expressões que perduram.
- Liberdade de leitura bíblica: defendeu que cada cristão tivesse acesso direto à Escritura em sua própria língua.
- Relação Igreja-Estado: sua visão moldou o arranjo religioso inglês e, por extensão, debates modernos sobre autoridade, consciência e lei.
- Legado histórico: em 2002, Tyndale ficou em 26º lugar no programa “100 Greatest Britons” da BBC, reflexo de sua importância cultural.
Linha do tempo essencial
- c. 1494: Nascimento de William Tyndale na Inglaterra.
- 1526: Publicação do Novo Testamento em inglês (Worms).
- 1528: Publicação de A Obediência do Homem Cristão (Antuérpia).
- 1530:The Practice of Prelates, com crítica à anulação do casamento de Henrique VIII.
- 1534: Ato de Supremacia; o rei torna-se Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra.
- 1535: Prisão de Tyndale em Antuérpia; encarceramento em Vilvoorde.
- 1536: Execução por heresia; estrangulamento e queima na estaca.
- 1537: Autorização da Matthew Bible, majoritariamente baseada em Tyndale.
- 1611: Publicação da King James Version, que aproveita extensamente sua linguagem.
Obras selecionadas de Tyndale
- The New Testament (1526, revisões posteriores)
- The Obedience of a Christian Man (1528)
- The Parable of the Wicked Mammon (1528)
- The Practice of Prelates (1530)
- Pentateuch (1530)
- Jonah (1531)
- A Pathway into the Holy Scripture (c. 1530)
Perguntas frequentes
O que é “A Obediência do Homem Cristão”?
É um tratado de 1528 no qual William Tyndale defende a primazia das Escrituras e argumenta que o rei, e não o papa, deve ser a autoridade máxima sobre a Igreja dentro de seu reino, sob Deus e a lei bíblica.
Como o livro influenciou Henrique VIII?
Um exemplar chegou ao rei, que encontrou ali uma base intelectual para o Ato de Supremacia (1534). Embora Tyndale discordasse do divórcio real, sua defesa da autoridade régia sobre a Igreja foi útil ao projeto político de Henrique.
Por que Tyndale foi executado?
Por heresia, segundo as autoridades católicas da época, devido às suas traduções e escritos reformadores. Em 1536, após prisão e julgamento, foi estrangulado e queimado na estaca em Vilvoorde.
Qual a importância de Tyndale para a Bíblia em inglês?
Imensa. Sua linguagem moldou as versões oficiais inglesas e deixou forte marca na King James Version (1611). Estimativas indicam que boa parte do texto da KJV deriva de suas traduções.
Tyndale apoiava o absolutismo?
Não nos termos modernos. Ele ensinou obediência às autoridades civis, mas condicionada à fidelidade às Escrituras; quando a lei humana contradiz a lei divina, prevalece a obediência a Deus.
Quais foram as principais obras de Tyndale além de “Obediência”?
Seu Novo Testamento em inglês (1526), o Pentateuco (1530), The Practice of Prelates (1530), The Parable of the Wicked Mammon (1528), Jonah (1531) e A Pathway into the Holy Scripture.
O legado de Tyndale é reconhecido hoje?
Sim. Além de sua influência literária e teológica, ele foi listado como o 26º maior britânico no ranking “100 Greatest Britons” da BBC (2002), e suas ideias continuam a ser estudadas em história, teologia e estudos literários.

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