
Richard Nixon foi o presidente que transformou um impasse de décadas em uma reviravolta geopolítica. Sua visita histórica à China em 1972 iniciou a aproximação entre Washington e Pequim, reequilibrando a Guerra Fria e lançando as bases de uma relação que, desde os anos 1980, se converteria em uma interdependência econômica sem precedentes, apesar das tensões estratégicas persistentes.
Este artigo explica por que Nixon foi à China, o que resultou do encontro com Mao Zedong e Zhou Enlai e como a normalização sino-americana moldou a política internacional e a economia mundial até hoje.
Quem foi Richard Nixon e por que sua viagem foi um divisor de águas
Richard Milhous Nixon foi o 37º presidente dos Estados Unidos, no cargo entre 1969 e 1974. Republicano, ex-vice-presidente de Dwight Eisenhower, Nixon é lembrado por três marcos que coexistem em tensão: a abertura à China, a política de détente com a União Soviética e a renúncia em meio ao escândalo Watergate.
Em política externa, Nixon e seu conselheiro de segurança nacional, Henry Kissinger, acreditavam que o equilíbrio global favoreceria os Estados Unidos se Washington explorasse a rivalidade sino-soviética. Ao aproximar-se de Pequim, Nixon buscou três objetivos estratégicos:
- Pressionar Moscou e negociar a partir de uma posição fortalecida na détente, resultando em acordos como o Tratado Antimísseis Balísticos.
- Ganhar alavancagem para encerrar a guerra do Vietnã e redesenhar a arquitetura de segurança asiática.
- Retirar os EUA do impasse de duas décadas com a China, abrindo um canal de cooperação contra riscos de hegemonia na Ásia.
O pano de fundo: da República da China à rivalidade comunista
As relações entre a China e os Estados Unidos têm raízes no século 19, com marcos como o Tratado de Wangxia em 1845 e a defesa norte-americana da Política de Portas Abertas no início do século 20. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, Washington apoiou a República da China na luta contra o Japão. Contudo, a vitória do Partido Comunista Chinês na guerra civil, em 1949, inaugurou um período de ruptura com os Estados Unidos.
Nos anos 1950, a Guerra da Coreia levou americanos e chineses a um confronto direto e sangrento. Em seguida, os Estados Unidos reconheceram o governo de Taipei como a China legítima e trabalharam para manter Pequim fora das Nações Unidas. O Estreito de Taiwan permaneceu um foco de tensão, com crises intermitentes. Na mesma época, Washington tentou, sem sucesso, mediar um compromisso entre nacionalistas e comunistas chineses após 1945.
O caminho para a aproximação: cisão sino-soviética e diplomacia secreta
Nos anos 1960, a ruptura entre a China de Mao e a União Soviética reconfigurou o tabuleiro da Guerra Fria. Moscou e Pequim disputavam liderança ideológica e segurança de fronteira, enquanto os Estados Unidos estavam envolvidos profundamente no Vietnã. Com habilidade, Nixon e Kissinger enxergaram uma chance de triangulação estratégica: se os EUA deixassem de tratar a China como inimiga absoluta, poderiam contrabalançar a URSS e abrir novas soluções para a Ásia.
Três movimentos tornaram a abertura possível:
- Diplomacia do pingue-pongue: em 1971, o convite para a equipe norte-americana de tênis de mesa visitar a China sinalizou degelo público, quebrando o gelo psicológico entre as sociedades.
- Canal paquistanês: o Paquistão, aliado tanto dos EUA quanto da China, serviu como ponte discreta para mensagens e encontros.
- Viagem secreta de Kissinger: em julho de 1971, Kissinger viajou sigilosamente a Pequim para preparar a visita presidencial e esboçar um entendimento político.
A visita de 1972: imagens, encontros e conteúdo
Em fevereiro de 1972, Nixon chegou a Pequim em uma cena que correu o mundo: o aperto de mãos com o primeiro-ministro Zhou Enlai, figura-chave da diplomacia chinesa. O encontro com Mao Zedong foi curto, porém simbólico. Ao longo de uma semana, a comitiva norte-americana percorreu Pequim, Hangzhou e Xangai, combinando gestos públicos e negociações privadas.
O Comunicado de Xangai
O ponto culminante foi o Comunicado de Xangai. O documento não resolveu todas as divergências, mas estabeleceu princípios duradouros:
- Princípio de uma só China: os EUA reconheceram que todos os chineses, de ambos os lados do Estreito, consideram existir uma única China e afirmaram interesse em uma solução pacífica para a questão de Taiwan. Não foi reconhecimento formal da soberania de Pequim sobre Taiwan, mas um compromisso político de respeitar a fórmula de uma só China.
- Oposição à hegemonia: ambas as partes se opuseram a qualquer tentativa de hegemonia na Ásia, um recado sutil à URSS.
- Intercâmbios e diálogo: o texto abriu caminho para visitas, comércio limitado, contatos culturais e o estabelecimento de eixos diplomáticos mais estáveis.
Politicamente, o comunicado reconheceu diferenças profundas, inclusive sobre sistemas e direitos, mas escolheu administrá-las. Entre linhas, sinalizou a transformação da China de adversária absoluta em interlocutora estratégica.
Efeitos imediatos: triangulação, Vietnã e a ONU
A abertura à China permitiu a Nixon avançar a détente com Moscou. Em 1972, os EUA e a URSS assinaram o Tratado Antimísseis Balísticos e o primeiro acordo de limitação de armas estratégicas, aliviando a corrida nuclear. Em paralelo, o gesto a Pequim contribuiu para isolar Hanoi e reorganizar negociações sobre o Vietnã, ainda que o fim do conflito tenha ocorrido com complexidade e custos humanos altos.
Em 1971, pouco antes da visita de Nixon, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 2758, transferindo a cadeira chinesa para a República Popular da China. A viagem de 1972 consolidou esse novo status e encorajou passos adicionais, como a abertura de escritórios de ligação em 1973. A normalização plena das relações diplomáticas viria em 1979, já no governo de Jimmy Carter, quando os EUA estabeleceram laços formais com Pequim e redefiniram sua relação com Taipei por meio do Ato de Relações com Taiwan.
Do degelo à interdependência: a dimensão econômica após 1980
Com as reformas e abertura econômica lideradas por Deng Xiaoping, a China passou a integrar cadeias globais de produção. A partir dos anos 1980, o comércio sino-americano saiu do quase zero para cifras superiores a 600 bilhões de dólares anuais em bens no início da década de 2020. Em 2001, a entrada da China na OMC impulsionou ainda mais os fluxos comerciais e investimentos, consolidando a China como grande plataforma manufatureira e parceira essencial de empresas norte-americanas em tecnologia, varejo e indústria.
Essa interdependência veio acompanhada de desequilíbrios e debates internos nos EUA sobre desindustrialização, transferência tecnológica e segurança de cadeias de suprimento. Ainda assim, o entrelaçamento econômico foi profundo: a China tornou-se um dos principais credores externos dos EUA, e os consumidores americanos se beneficiaram de preços mais baixos em uma ampla gama de produtos.
Rivalidade e cooperação no século 21
Apesar de décadas de comércio e diálogo, persistem divergências fundamentais sobre governança, direitos humanos, tecnologia e segurança regional. Como economias número um e dois do mundo em termos nominais, e com a China superando os EUA em PIB por paridade de poder de compra, as duas potências passaram a ser vistas como protagonistas da relação bilateral mais importante do século 21.
Cooperação e tensões
- Interesses comuns: não proliferação nuclear, estabilidade financeira, mudanças climáticas e, por vezes, gestão de pandemias e crises humanitárias.
- Pontos de atrito: direitos humanos, o futuro de Taiwan, militarização do Mar do Sul da China, cibersegurança e soberania tecnológica.
- Percepções públicas: pesquisas em 2020 mostraram queda acentuada da imagem mútua, refletindo disputas comerciais, tecnológicas e narrativas políticas contrastantes.
Da pivot à competição estratégica
Durante o governo Obama, a estratégia de reequilíbrio para a Ásia enfatizou alianças regionais e presença naval, o que Pequim interpretou como contenção. Sob Trump, a China foi qualificada como competidora estratégica, lançando-se uma guerra comercial, com tarifas recíprocas e restrições a empresas consideradas sensíveis do ponto de vista de segurança. Algumas ações incluíram medidas contra fornecedores tecnológicos e sanções relacionadas a direitos humanos.
No governo Biden, a competição permaneceu como eixo, com foco em semicondutores, cadeias críticas e alianças no Indo-Pacífico. Ao mesmo tempo, manteve-se espaço para cooperação seletiva, por exemplo em clima, enquanto a retórica chinesa de diplomacia combativa ganhou proeminência. Em suma, a relação se tornou uma combinação de interdependência econômica e rivalidade sistêmica.
O legado de Nixon além da China
A abertura à China foi parte de uma estratégia maior de Nixon. Seu governo viu o fim da participação de combate dos EUA no Vietnã em 1973, o fim do alistamento militar obrigatório no mesmo ano e a consolidação de acordos com a URSS. No plano doméstico, estabeleceu a Agência de Proteção Ambiental, impôs controles temporários de preços e salários, promoveu a dessegregação escolar no Sul e impulsionou o combate ao câncer e a reforma de substâncias controladas. Ele também presidiu à histórica alunissagem da Apollo 11, marco simbólico do fim da Corrida Espacial.
Contudo, sua trajetória terminou abruptamente. O caso Watergate corroeu sua base política e levou à renúncia em 1974, evitando um processo de impeachment quase certo. Posteriormente, Nixon foi perdoado por Gerald Ford, escreveu memórias e livros de política internacional e, aos poucos, reconstruiu parte de sua imagem como analista de assuntos globais.
Por que a viagem de 1972 continua central
A visita de Nixon à China não apenas reabriu um canal entre dois países que haviam sido inimigos diretos na Coreia. Ela redefiniu a própria lógica da Guerra Fria, ao tornar a relação triangular EUA-China-URSS o novo centro de gravidade. Também preparou o terreno para a transformação econômica chinesa e para uma globalização que levou fábricas, capitais e empregos a transitarem entre duas economias outrora estanques.
Para o bem e para o mal, a aposta de Nixon em engajamento estratégico produz efeitos até hoje. A competição tecnológica de ponta, as disputas marítimas no Indo-Pacífico e a sensibilidade em torno de Taiwan são herdeiros de um processo que ele ajudou a inaugurar. Ao mesmo tempo, a capacidade de cooperar em desafios globais permanece calcada na decisão de 1972 de falar, negociar e institucionalizar uma relação antes definida pelo silêncio e pela hostilidade.
O que mudou desde então e o que esperar
A normalização de 1979 e o ciclo de reformas na China transformaram a balança do poder econômico. A partir dos anos 2000, o crescimento chinês acelerou o comércio bilateral, enquanto ambos os países desenvolveram cadeias de valor intricadas em eletrônicos, maquinário, farmacêuticos, agronegócio e serviços. Ao mesmo tempo, a ascensão militar e tecnológica da China, as disputas no Mar do Sul da China e o debate sobre governança digital e direitos fundamentaram uma rivalidade mais estrutural.
É provável que a relação siga uma lógica de competição gerenciada: desacoplamento seletivo em setores críticos, construção de resiliência de cadeias, proteção de propriedade intelectual e investimento em inovação, ao lado de mecanismos de comunicação para evitar crises e de espaços de cooperação climática, sanitária e financeira. A abertura iniciada por Nixon não garante convergência política, mas oferece instrumentos diplomáticos para evitar que diferenças se convertam em conflito aberto.
Conclusão
A visita de Richard Nixon à China foi um dos movimentos mais ousados da diplomacia moderna. Ao converter antagonismo em diálogo estratégico, Nixon inaugurou uma era que alterna cooperação e competição, refletindo interesses econômicos comuns e divergências ideológicas persistentes. Quase meio século depois, a relação sino-americana continua sendo a mais importante do mundo, e compreender sua origem em 1972 é entender a engrenagem central da geopolítica do século 21.
FAQ
Por que Richard Nixon decidiu visitar a China em 1972
Para explorar a rivalidade sino-soviética, ganhar alavancagem na Guerra Fria, buscar saídas para o Vietnã e romper um impasse de décadas com Pequim. A estratégia visava redesenhar o equilíbrio de poder global por meio da triangulação com a URSS.
O que foi o Comunicado de Xangai
Foi o documento conjunto ao final da viagem, que estabeleceu princípios para a relação. Entre eles, o entendimento de uma só China, o compromisso com solução pacífica para a questão de Taiwan, a oposição à hegemonia na Ásia e o início de intercâmbios e diálogo estruturado.
A visita reconheceu Taiwan como parte da China
Os EUA reconheceram a posição de que existe uma só China e enfatizaram uma solução pacífica para o Estreito de Taiwan, mas o reconhecimento diplomático formal da República Popular da China e a redefinição da relação com Taipei ocorreram apenas em 1979, no governo Carter.
Como a viagem impactou a Guerra Fria
Ela fortaleceu a posição dos EUA ante a URSS, ajudou a viabilizar a détente e levou a acordos de controle de armas. Ao mesmo tempo, reposicionou a China como ator central, alterando a geometria do poder global.
Quando as relações entre EUA e China foram normalizadas
Em 1979, com o estabelecimento de relações diplomáticas plenas. Antes disso, em 1973, foram criados escritórios de ligação, e em 1971 a China assumiu a cadeira na ONU por decisão da Assembleia Geral.
Quais foram os principais efeitos econômicos após 1980
Com as reformas chinesas e a entrada na OMC em 2001, o comércio sino-americano cresceu para mais de 600 bilhões de dólares em bens por ano. Cadeias de valor globais se integraram, impulsionando investimentos, exportações e ganhos de produtividade, mas também acendendo debates sobre empregos e segurança.
O legado de Nixon é positivo ou negativo
É ambivalente. Sua abertura à China e a détente foram marcos estratégicos, enquanto o Watergate levou à sua renúncia e a avaliações críticas. A história costuma vê-lo como um presidente de grande visão externa, porém com falhas graves de ética e governança interna.

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