
Quando 11 dias sumiram: o que realmente aconteceu
Reformas do calendário são atos públicos que mexem com o tempo civil: de um dia para o outro, datas são ajustadas, feriados deslizam e aniversários “mudam” de lugar. No século XVIII, parte do mundo ocidental trocou o calendário juliano pelo gregoriano e literalmente pulou dias. No século XX, países como a Rússia fizeram o mesmo, saltando quase duas semanas. O resultado? Um enorme esforço prático e cultural para conciliar contagens antigas e novas — e, até hoje, dúvidas na hora de interpretar datas históricas.
Este guia explica como as reformas do calendário ressignificaram feriados, feiras e comemorações anuais; como governos, igrejas e comunidades lidaram com alugueis, datas de vencimento e “quarter days”; e traz um passo a passo para ler “Old Style” (OS) versus “New Style” (NS) em entradas de “Neste Dia”, além de alinhar observâncias históricas ao calendário atual.
Por que houve reformas do calendário?
O calendário juliano, introduzido por Júlio César, tinha um pequeno excesso na contagem do ano solar. Ao longo de séculos, o equinócio “escorregou” em relação às datas fixas. Em 1582, o papa Gregório XIII promulgou o calendário gregoriano para corrigir o desvio e ajustar o cálculo da Páscoa. Países católicos adotaram a mudança em 1582, pulando 10 dias. Estados protestantes e ortodoxos demoraram mais, criando um mosaico de datas “OS” (Juliano) e “NS” (Gregoriano) que coexistiram por séculos.
Quantos dias foram pulados?
- 1582 (adoção inicial por países católicos): 10 dias foram suprimidos.
- 1700–1800: a diferença ficou em 11 dias (como no Reino Unido em 1752).
- 1800–1900: 12 dias.
- 1900–2100: 13 dias (caso da Rússia em 1918).
A diferença aumenta em séculos “múltiplos de 100” que não são bissextos no gregoriano, mas são no juliano (1700, 1800, 1900, 2100...).
O salto britânico de 1752: feriados, “quarter days” e o ano fiscal
O Calendar (New Style) Act 1750 levou Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda a adotarem o gregoriano em 1752. Duas mudanças centrais:
- Os 11 dias “sumiram”: após 2 de setembro de 1752 veio 14 de setembro.
- O começo legal do ano mudou: deixou de ser 25 de março (Lady Day) e passou a ser 1º de janeiro.
E os feriados e festas?
Autoridades civis e eclesiásticas realocaram feriados fixos. Algumas datas seguiram simplesmente “avançando” 11 dias para manter sua posição sazonal; outras permaneceram na mesma folha do calendário, agora com nova referência astronômica. Em muitas localidades, o povo manteve “datas antigas” por apego cultural, originando pares como “Old Michaelmas” e “Old Christmas”. Exemplos:
- Old Christmas: em partes das Ilhas Britânicas, o Natal continuou a ser celebrado no início de janeiro (5/6 de janeiro), preservando o dia juliano original de 25 de dezembro.
- Old Michaelmas Day: 29 de setembro (OS) passou a equivaler a 10 de outubro (NS). Comunidades rurais mantiveram feiras e contratações nessa data “antiga”.
“Quarter days” e aluguéis
No calendário inglês, quatro “quarter days” estruturavam contratos, aluguéis e salários: Lady Day (25 de março), Midsummer (24 de junho), Michaelmas (29 de setembro) e Christmas (25 de dezembro). Após 1752, emergiram duas práticas:
- Manter a data nominal (ex.: 25 de março NS), alinhando-se ao novo calendário.
- Preservar a sazonalidade, empurrando 11 dias (ex.: Old Lady Day em 5 de abril) para que os prazos ocorressem nas mesmas condições agrárias e de mercado.
Esse ajuste explica um legado curioso: o ano fiscal britânico termina em 5 de abril (e, após um acerto adicional em 1800, começa em 6 de abril). Originalmente, o ciclo fiscal se ancorava no Lady Day; ao pular 11 dias, deslocou-se para 5 de abril para não “perder” arrecadação — e mais tarde ganhou um dia extra para compensar outro descompasso secular.
Feiras e contratações
Feiras de contratação (“mop fairs”) e mercados sazonais, vitais à economia local, muitas vezes migraram 11 dias. Em algumas cidades, surgiram duas feiras: a “nova” (NS) e a “antiga” (OS), realizadas em semanas diferentes de outubro. Essa duplicidade podia favorecer comércio e turismo, mas também gerava confusão documental.
Riots por “11 dias a menos”? Mito persistente
É famosa a ideia de que o povo britânico teria saído às ruas exigindo “devolvam nossos onze dias”. Pesquisas históricas indicam que, embora tenha havido insatisfação e sátira política, não há evidências de revoltas generalizadas por causa do salto.
Rússia 1918: 13 dias que mudaram o calendário — mas não as tradições
O governo soviético adotou o gregoriano em 1918. Pelo decreto, 31 de janeiro de 1918 foi seguido por 14 de fevereiro de 1918, suprimindo 13 dias. A convivência de marcos “políticos” e “religiosos” ficou evidente:
- Revolução de Outubro: ocorreu em 25 de outubro de 1917 (OS), que corresponde a 7 de novembro (NS). Por isso, aniversários dessa revolução usam, no Ocidente, a data de 7 de novembro.
- Natal ortodoxo: a Igreja Ortodoxa Russa manteve o calendário juliano para liturgia; o “25 de dezembro” (OS) cai em 7 de janeiro (NS). Daí a popularidade do “Antigo Ano-Novo” em 14 de janeiro (NS).
Outros casos notáveis
- Suécia: tentou uma transição gradual e, após reveses, corrigiu-se em 1753, saltando 11 dias (17 de fevereiro foi seguido por 1º de março). Em 1712, teve inclusive um 30 de fevereiro para realinhar o calendário.
- Japão: adotou o gregoriano em 1873, saltando diretamente do calendário lunissolar tradicional para 1º de janeiro de 1873, o que “encurtou” o fim de 1872.
- Grécia: migrou em 1923 no âmbito civil, com impactos em feriados e registros públicos.
Como ler datas “Old Style” (OS) e “New Style” (NS)
Para genealogistas, jornalistas e quem consulta “Neste Dia”, entender OS vs NS evita erros. Eis um guia prático:
1) Identifique o país e a época
- Se a data for anterior à adoção do gregoriano no país em questão, ela pode estar em OS.
- Em documentos britânicos anteriores a 1752, o ano legal começava em 25 de março. Assim, datas entre 1º de janeiro e 24 de março pertenciam, legalmente, ao ano anterior.
2) Faça a “dobra” do ano (apenas para o mundo britânico, 1º jan–24 mar)
Ao converter para NS, some 1 ao ano para datas entre 1º de janeiro e 24 de março. Exemplo: 20 de fevereiro de 1684 (OS) = 20 de fevereiro de 1685 (NS), antes de aplicar a diferença de dias.
3) Some a diferença de dias correta
- 1582–1700: +10 dias.
- 1700–1800: +11 dias.
- 1800–1900: +12 dias.
- 1900–2100: +13 dias.
Exemplo clássico: o batismo de William Shakespeare foi em 26 de abril de 1564 (OS). Ao converter para NS (período +10 dias), chega-se a 6 de maio de 1564 (muitos também citam 3–6 de maio para o suposto aniversário, tradicionalmente 23 de abril OS).
4) Mantenha a transparência
- Ao publicar, informe ambas as formas se houver potencial ambiguidade: “7 de novembro de 1917 (25 de outubro OS)”.
- Em entradas de ‘Neste Dia’, indique claramente OS ou NS, sobretudo para eventos britânicos pré-1752 e para países que adotaram o gregoriano tardiamente.
Como realinhar feriados, feiras e aniversários históricos hoje
Nem toda observância deve ser “simplesmente” somada em 11 ou 13 dias. Pergunte-se:
- O que se deseja preservar? A posição sazonal (ligada a colheitas, estações) ou o número do dia do mês?
- Qual é o contexto (civil, religioso, local)? Instituições podem manter práticas distintas.
Três abordagens úteis
- Equivalência astronômica (recomendada para ciência e cronologia): converta OS para NS usando as diferenças acima e ajuste o ano quando necessário. Preserve a proximidade com solstícios/equinócios.
- Continuidade cultural (comunidades e tradições): mantenha a data “antiga” como festa local (ex.: “Old Michaelmas” em 10 de outubro NS), ainda que haja um equivalente “novo”.
- Dupla marcação (publicação e educação): mostre OS e NS, permitindo que o público compare. Em “Neste Dia”, escreva, por exemplo: “Revolução de Outubro: 25 de outubro de 1917 (OS) / 7 de novembro de 1917 (NS)”.
Movíveis e litúrgicos: um caso à parte
Datas móveis, como a Páscoa, dependem de cálculos específicos. O gregoriano ajustou a regra pascal; por isso, muitas igrejas ortodoxas que mantêm o cálculo juliano celebram a Páscoa em datas diferentes. Já nas igrejas que adotaram o Revised Julian Calendar (revisado), as festas fixas coincidem com o gregoriano até o ano 2800, embora a Páscoa possa divergir. Ao alinhar observâncias religiosas, verifique qual calendário litúrgico a comunidade adota.
Exemplos práticos que costumam confundir
- “Contrato vence em Lady Day” (Inglaterra, século XVIII): pergunte se o texto usa OS ou NS. Se o hábito local preservava “Old Lady Day”, interprete como 5 de abril (NS). Caso contrário, 25 de março (NS).
- “Feira de Michaelmas” (Inglaterra): a feira poderia ocorrer em 29 de setembro (NS) ou em 10 de outubro (OS convertido). Muitos municípios mantiveram ambas por décadas.
- “Aniversário em 10 de janeiro de 1700 (Inglaterra)”: em documentos legais, esse 10 de janeiro ainda pertence ao ano 1699 (OS). Para citar hoje, converta o ano para 1700 (NS) e some a diferença de dias aplicável.
- Rússia: celebração de Natal: 25 de dezembro (OS) = 7 de janeiro (NS) no período 1900–2100. Para “Neste Dia” internacional, use 7 de janeiro, indicando a forma OS quando relevante.
Boas práticas editoriais para “Neste Dia” e cronologias
- Sinalize o calendário: acrescente (OS) ou (NS) ao lado da data, quando houver risco de confusão.
- Converta consistentemente: escolha um padrão (em geral, o gregoriano/NS) para a data exibida e traga a alternativa entre parênteses.
- Use datas duplas para o mundo britânico pré-1752 entre 1º jan e 24 mar: “11 de fevereiro de 1684/5 (OS)”.
- Explique exceções: feriados religiosos e festas locais podem seguir calendários próprios; informe o critério adotado.
Checklist rápido para conversão OS → NS
- Identifique país e período de adoção.
- Se for Reino Unido antes de 1752, ajuste o ano para datas de 1º jan–24 mar.
- Some a diferença de dias correta (10, 11, 12 ou 13).
- Verifique se a data resultante atravessa o fim do mês.
- Documente como OS/NS ao publicar.
Conclusão
As reformas do calendário foram mais do que um acerto técnico: reprogramaram a vida social, legal e religiosa. “Quando 11 dias sumiram” — ou 10, 12, 13 — governos renegociaram prazos, comunidades preservaram tradições em datas antigas e a memória coletiva passou a carregar rótulos como “Old Style” e “New Style”. Ao interpretar registros e montar cronologias, a chave é a clareza: indicar o calendário, aplicar a conversão correta e, quando fizer sentido, oferecer ambas as formas. Assim, feriados, feiras e aniversários históricos encontram seu lugar no calendário moderno sem perder a ligação com o passado.
FAQ
Por que às vezes foram 10 dias, outras 11, 12 ou 13?
Porque o calendário juliano considera bissextos todos os anos múltiplos de 4, enquanto o gregoriano exclui os séculos não divisíveis por 400 (1700, 1800, 1900, 2100...). A diferença aumentou com o tempo: 10 dias em 1582; 11 no século XVIII; 12 no XIX; 13 no XX e XXI.
As pessoas “perderam” dias de vida ou salários?
Não literalmente. O relógio não parou e a contagem de idade seguiu contínua. Governos e proprietários ajustaram prazos (aluguéis, impostos) para evitar perdas, como mostra o deslocamento do ano fiscal britânico para 5/6 de abril.
Houve motins no Reino Unido por causa dos 11 dias?
O famoso grito “devolvam nossos onze dias” é sobretudo satírico. Embora existisse desconforto, fontes sólidas não indicam revoltas generalizadas motivadas apenas pelo salto.
Por que o “Natal ortodoxo” é em 7 de janeiro?
Porque muitas igrejas ortodoxas usam o calendário juliano para festas fixas. O “25 de dezembro” juliano cai em 7 de janeiro no gregoriano no período 1900–2100.
Como devo citar datas britânicas entre 1º de janeiro e 24 de março antes de 1752?
Use data dupla (ex.: 11 de fevereiro de 1684/5) ou converta para o ano NS (1685) e informe que o original estava em OS. Esclarecer evita confusões em cronologias.
Como alinhar um feriado histórico local após a reforma?
Defina a prioridade: manter a sazonalidade (converter OS → NS somando 11/13 dias) ou manter o número do dia. Quando há valor cultural em ambos, publique as duas datas e explique a tradição local.
Eventos como a “Revolução de Outubro” ficaram com nome errado?
O nome reflete a data no calendário juliano (25 de outubro de 1917). No gregoriano, o aniversário recai em 7 de novembro. Ao escrever para públicos internacionais, exiba ambas as referências.

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